VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - LIVRO EM PDF

>> quarta-feira, 7 de setembro de 2016

VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL


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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XIX INTRODUÇÃO DA DOÇARIA CONVENTUAL MANJAR BRANCO E DOCE D' OVOS , NOTAS FINAIS E BIBLIOGRAFIA

>> quarta-feira, 29 de junho de 2016

A doçaria conventual - aquilo que ainda hoje faz lembrados os mosteiros femininos portugueses - foi arte que só começou no século XVI. Só então, com a importação da cana d’açúcar da Índia e do Mediterrâneo e implantação da produção de açúcar em Portugal, na Ilha de São Tomé e depois no Brasil, o açúcar se tornou um género acessível. Que os reis até davam em esmola aos mosteiros seus protegidos. Em 1509, D. Manuel dá dez arrobas de açúcar ao Convento de Jesus de Aveiro; em 1517 dão-se 8 arrobas de açúcar de esmola à Santa Clara de Lisboa, e 5 arrobas de açúcar branco a Santa Clara de Beja. Nos anos do reinado de D. Manuel esmolas dessas vão ainda para a Madre de Deus em Lisboa, para os conventos de Santa Clara em Lisboa, Portalegre, Beja e outros. Também as especiarias eram dádiva frequente dos soberanos aos mosteiros: 4.000 reis em especiaria ao convento de Celas, em 1512, especiarias em porção não especificada a Santa Clara de Portalegre e ao mosteiro de Jesus de Aveiro em 1518; 4000 reis de ‘droga’ ao mosteiro de Santa Clara de Coimbra em 1519. E as religiosas de todos os mosteiros de Portugal lançaram-se e na produção de uma arte nova, a arte da doçaria ou pastelaria, alcançando, nesse campo glória imorredoira. E merecida.
A coisa deve ter evoluído gradualmente, as monjas tiveram de pensar como melhor aproveitar o doce açúcar que lhes caía em casa e que até ali praticamente desconheciam. Tinham talvez usado um pouco dele em alguma mesinha para as suas doentes, nunca na cozinha. Descobriram, provavelmente por acaso, a cozedura do açúcar em ponto. Deram nomes aos graus de ponto ‘de cabelo, de pingo.’ Lembraram-se de juntar açúcar aos ovos postos abundância pelas galinhas que pululavam em todos os mosteiros. Cozida ou em caldo, a galinha era remédio para todos os males. Os visitadores faziam os seus reparos: que o galinhaço até entrava pelo coro, que as galinhas sujavam o claustro e originavam brigas entre as suas donas. Sem efeito. As galinhas continuaram a picotar nos claustros e pátios dos mosteiros. Enquanto não se lhes torcia o pescoço, se coziam ou guisavam, as galinhas punham ovos. Ovos e açúcar ligavam bem, monjas e freiras criaram, com arte e imaginação, inúmeros doces diferentes com os mesmos dois ingredientes. Juntaram-lhes por vezes especiarias, amêndoas. Lembraram-se de usar a obreia das hóstias para base de queijinhos d’ovos, de broas d’ovos.
Nos mosteiros havia a matéria-prima, a mão-de-obra, e o tempo para aquele fabrico. E a criatividade. Entre tantas mulheres, haveria sempre uma com talento para inventar e inovar. E para dar nomes adequados àquelas criações: A produção de doçaria por parte das religiosas desenvolveu-se, mas não era apreciada por todos as autoridades religiosas. Nas actas dos visitadores encontram-se - a partir do século XVI - constantes protestos contra os exageros da produção de doçaria, e da venda de doces para fora, ‘porque o fazerem-se as religiosas tratantes, e da casa de Deus mercancia, resulta em desserviço do mesmo senhor’. Depois de uma visita ao mosteiro de Santa Clara da Guarda, os visitadores ordenavam que nenhuma religiosa fizesse ‘trato em mercancia de doces para fora’, e que a madre abadessa acabasse de vez com o abuso. O que não aconteceu. Uma vez começada, a coisa iria tomar proporções de exagero, as monjas esquecendo as rezas na azáfama de bater ovos e vigiar o ponto de açúcar. Em Arouca faziam-se, em meados do século XVII, dezoito espécies diferentes de pastéis e doces. E, por todo o Portugal, as abadessas gratificavam em dias de festa os magistrados que trabalhavam para o seu convento, e os padres que lhes diziam as missas, com ‘prateleiras’ de doçaria variada.
Em Lorvão havia no século XVII uma ‘sala dos doces’, presume-se que aí se preparavam doces, mas ignorava-se até há pouco que doces eram esses. Livros conventuais de receita de doces são raros, se os houve, desapareceram. As receitas transmitiram-se por tradição oral. Um livro, recentemente publicado, da autoria do Dr. Nelson Correa Borges, intitulado ‘Doces conventuais de Lorvão’ , contém receitas de doces, conservadas nas famílias da terra, atribuídos - e decerto com razão - às monjas do mosteiro de Lorvão. As monjas tinham criadas, mulheres da terra que as ajudavam na convecção dos doces, que muito naturalmente levaram as receitas para suas casas, ou as ensinavam a outras mulheres. As receitas iam-se transmitindo, a sua origem conventual muitas vezes esquecida. Em Lorvão faziam-se entre outros os ‘Papos d’anjo, o Bolo de Bispo, o Bolo de Santa Teresa, os Bolos das Infantas, Queijinhos do céu, Capelas de ovos, Fatias do céu’. Tudo doces à base de ovos e açúcar, em Lorvão como nos outros mosteiros e convento de Portugal com nomes adequados à sua proveniência: papos d’anjo, pingos de tocha, queijinhos do céu, tocinho do céu
Pingo de tocha de Arouca
Um doce conventual que não tem a nada a ver com os doces d’ovos é aquela curiosa confecção doce, à base de peito de galinha., conhecida por ‘Manjar Branco’. Aquela papa branca, que, em Lorvão, era apresentada em toscos discos de barro, é coisa muito mais antiga que os doces d’ovos, e não, como estes, especificamente português. Um doce com os mesmos ingredientes era designado em França por ‘blanc manger’, e  era uma confecção usada em toda a Europa medieval. Uma pesquisa Google menciona a existência da receita em um caderno de ensegnements, de ensino culinário, de fins do blanmangerséculo XIII, inícios de XIV. O mesmo caderno ensina ainda como confeccionar o ‘blanc-brouet’, também de peito de galinha, mas com uma diferença, não levava leite.
Manjar branco                   ‘ Blancmange’

Sabe-se que a receita do manjar branco veio do mosteiro de Celas para o de Lorvão, ignorando-se contudo como e quando chegou a Portugal. Talvez tivesse sido trazida por um dos visitadores de Cister, que periodicamente vinham a Portugal, ou por um qualquer outro viajante de passagem. As monjas de Lorvão tiveram a ideia de servir o seu branco manjar numas rodelas de barro. O que faz do seu ‘manjar banco’ uma especialidade laurbanense.
Havia outras confecções doces nos diferentes mosteiros. No livro de Mordomia de Lorvão de 1659 lê-se que no dia de Santo António havia ‘milhares’ para a merenda desse dia. Compraram-se - em Junho desse ano 145 pães e 150 queijos, assim como leite para ‘milhares’. ‘Eram papas de milho que, em Lorvão, quando feitas para a comunidade, levavam 3 arráteis de açúcar e mais de 200 quartilhos de leite. Em 1660, lemos que se tinham comprado para a enfermaria e para a merenda que se dava no dia de Sº António, além das habituais cerejas, 150 queijos, 165 pães, 145 pastéis. E ainda leite para ‘arroz doce’, que se dava ao convento no dia de Sº António, e o dos ‘milhares’ da merenda do mesmo dia. Acrescentara-se portanto pastéis e arroz doce à ementa do ano anterior.
O ‘arroz doce’ que também deve ter entrado nos mosteiros com os Descobrimentos, designava-se de entrada por ‘arroz de leite’. Numa receita quinhentista de Lorvão lê-se que se gastavam ali para o ‘arroz de leite para o Santíssimo Sacramento’- ou seja, para a refeição desse dia – ‘27 arráteis de arroz, 26 de açúcar, 213 quartilhos de leite’. Em receita mais recente o ‘arroz doce’ já é enfeitado com canela. Fazia-se com ‘28 arráteis de arroz, 12 de açúcar, o almude de leite, 1/2 quartilho de água de flor, e 1 onça de canela”

~~FIM~~
                       

NOTAS finais e BIBLIOGRAFIA
Cheguei ao fim desta minha primeira experiência de publicação on-line - creio que é assim que se diz. O livro teve à volta de cinquenta leitores para cada capítulo. O que parece pouco, mas em Portugal não é mau para um livro deste tipo e sobre este tema. Gostaria de pensar que tenha ajudado algum estudante proporcionando-lhe informações úteis que não encontraria facilmente de outra forma. O texto vai agora ser publicado em Pdf. Farei ainda uma revisão, e agradeço desde já aos leitores que indiquem erros ou falhas que tenham notado, e que eu possa corrigir.
Umas palavras sobre a Bibliografia que em seguida indico. Cito unicamente os livros que de alguma forma são pertinentes ao assunto do livro. Consultei obviamente outros, o tema faz parte da história medieval, e não se estuda lendo unicamente textos sobre um determinado aspecto dessa época.
Para alguns do livros indicados há uma explicação, que pode não ocorrer ao leitor. A ‘Crónica Nurembergensis’ de Hartman Schedel é citada porque foi lá que procurei, e encontrei, uma imagem contemporânea do Porto medieval. A ‘Crónica’ é considerada útil pelas imagens das cidades alemãs que reproduz. Quando procurei uma vista da cidade do Porto para o capítulo XVI consultei a ‘Crónica’, e dei com uma gravura que me pareceu ter a marca de alguém que esteve na cidade, ou a quem esta foi descrita.
O livro ‘Religioese Frauenbewegungen im Mittelalter’, ou seja sobre os movimentos religiosos femininos na Idade Média, que me foi indicado na Livraria Histórica Ultramarina pelo Dr. Berkmeier foi essencial para a compreensão do que se passava no século XIII em matéria de religião quando os monges foram expulsos de Lorvão e substituídos nesse grande mosteiro por monjas de Cister.
Os livros ‘As freiras de Lorvão e ‘o mosteiro de Lorvão’ de T. Lino d’Assunção deram o impulso a este livro. Quando iniciei este trabalho esses livros eram considerados fonte da história do mosteiro de Lorvão, e praticamente os únicos livros que tratavam dos mosteiros femininos. Pensei que as muitas mulheres que, por vocação ou obrigação, viveram as suas vidas nos mosteiros de Portugal, e muitas vezes aí se realizaram como administradoras, mestras de letras e canto, e em muitos outros ofícios, mereciam ser recordadas de outra forma do que com a superficial ligeireza que Lino d’Assunção considerou adequada ao tema.

BIBLIOGRAFIA
FONTES MANUSCRITAS
BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA (BNL) Col. Pombalina
Visitações de D. Jorge de Ataíde. Bº de Viseu,
CHAGAS, Frei Hilário
Memória e Fundação dos Mosteiros das Religiosas da Ordem de São Bernardo neste Reyno de Portugal Códice Alcobaça 92
TORRE DO TOMBO (TT)
GAVETAS da Torre do Tombo
CARTAS MISSIVAS
EITURA NOVA. Lº 3, 6, 9, 11, 12 da Extremadura Lº 2 de Além Douro Lº 7 de Odianna
ARQUIVOS MONÁSTICOS
Mosteiro de Santa Maria de Arouca
Vols. 2, 4, 5, 7, 107, 135, 150, 161
Mosteiro de Santa Maria de Coz
Mosteiro de Jesus de Aveiro
Mosteiro de Jesus de Setúbal
Mosteiro de Santa Maria de Almoster,
Mosteiro de Santa Maria de Celas, Maços IV a Maço IX
Mosteiro de Santa Maria de Lorvão,
COLECÇÃO ESPECIAL, Lº 40, Maços 2 a 9. 
Lº 313 Privilégio e Prazos
Lº 359
Livro das Preladas
Colecção de maços de Doc. Avulsos
Mosteiro da Madre de Deus dm Lisboa
Fundação do mosteiro da Madre de Deus Livro Mss
Mosteiro de Odivelas
Mosteiro de Chelas
Convento de Santa Clara da Guarda
Vol. 3 Livro de Visitações
Convento de Santa Clara do Porto

FONTES IMPRESSAS,
INVENTÁRIO dos códices iluminados até 1500. Secretaria do Estado da Cultura,1994
LIVROS IMPRESSOS
ANDRADE, José Maria d’
Memórias do mosteiro de Cellas
Coimbra, Imprensa Académica, 1892
ASSUNÇÃO, T.Lino d’ , As Monjas de Lorvão
Os mosteiros de Lorvão e Santa Clara e o templo da Sé Velha
Coimbra, Tipografia do Seminário, 1893
BACKHOUSE, Janet
The Illuminated Manuscript
Phaydon, Oxford. 1979
BORGES DE FIGUEIREDO, A. C. O Mosteiro de Odivelas, Livraria Ferreira 1889
BRANCO, Manuel Bernardes
História das Ordens Monásticas em Portugal 3 vols. Lisboa, Livraria Editora de Cardoso & Irmão MDCCCXXXVIII
BRONSEVAL, Frère Claude
Peregrinatio Hispanica 1531-1533, 2 vol.
Paris, Presses Universitaires de France 1970
BUEHLER, Johannes 
Klosterleben im deutschen Mittelater
Insel Verkag, Leipzig, 1923
CASADO, Concha. CEA, António
El Monasterio de Santa Maria de Gradefes
Leon, editones Lancia
COCHERIL, P. Maur
Les Abbesses de Lorvão au xv. siècle
Louvain, 1960
COCHERIL, P. Maur
Recherches sur l’ordre de Citeaux au Portugal. Livraria Bertrand, 1960
- Études sur le monachisme en Espagne et au Portugal. Livraria Bertrand, Lisbonne. 1966
--Notes sur l’architecture et le décor dams les Abbayes cisterciennes du Portugal
Paris, Fundação Calouste Gulbenkian 1972
CONSTITUIÇÕES das Religiosas da Ordem dos Eremitas de São Agostinho….
Coimbra, no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, anno 1734
CORREIA BORGES, Nelson
Mosteiro de Lorvão
EPARTUR Edições Portuguesas de Arte e Turismo  Ltd. Coimbra 1982
-- Doçaria conventual de Lorvão
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COULTON, G.G. Medieval Village, manor and monastery
New York, Evanstonand London
Harper’s &Row publisher
--Five Centuries of Religiom. Vol.V. The last days of Medieval Monasticism
Cambridge University Press 1950
-COUSIN, Patrice
Précis d’Histoire Monastique
Bloud&Gay
CRÓNICA da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, e Memorial da Infanta Santa Joana filha de Dom Afonso V, Leitura e revisão de António Gomes da Costa Madahil Aveiro, 1939
FAIRBANK, Alfred
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Deschichte des Essems
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DU HAMEL, Christopher de
 Scribes and Iluminators
Edward Arnold. London
LABARGE, Margaret Wade
Women in Medieval Life
Hamish Hamilton, London
MATTOSOS, José Portugal Medieval. Notas Interpretações
Imprensa Nacional Casa da Moedas
-----O Ideal de Pobreza e as Ordens Monásticas em Portugal durante os séculos XI-XIII
Lisboa, 1973
---Documentos beneditinos da Tore do Tombo
Lisboa /1970
NOBILIÁRIO de D Pedro conde de Barcelos, hijo del rey D. Dinis de Portugal
……En Roma. Por Estevan Paolino MDCXL
POWER, Eileen
Medieval Women
Cambridge University Press
Cambridge. New York. Port-Chester.Melborne.Sidney
--Medieval English Nunneries
REGRA DOGLORIOSO PATRIACHA S. BENTO, tirada de latim em linguagem Portuguesa por indústria do reuerendilsimo P. Fr. Thomas do Socorro Geral nesta congregação de Portugal, segunda ves impressa com todas as licenças necessárias. Impressa em Coimbra em casa de Nicolao carvalho impressor da Universidade no Anno de 1632. A custa da Congregação de S. Bento
SCHEDEL, Hartman Cronica Nuerembergensiss
Fac-simile
SITWELL, Sacheverell
Monks Nuns and Monasteries
Weidenfeld and Nicolso
20, New Bond Street,London. WI

Áudio livros
WHITEFIELD, Peter History of European Art, Naxos AudioBooks, 2012



DICIONÁRIOS
-CAPELLI, Ulrico Aoepli
Abreviaturi Latini ed italiane
Milano
LOPEZ E DE TORO, José
Abreviaturas Hispanicas
Madrid, 1957
OlIVEIRA MARQUES, A.H.
Guia do Estudante da História Medieval Portuguesa
Eduções Cosmos, Lisboa
VITERBO, frei Joaquim de Santa Rosa de
Elucidário das palavras, termos, e frases anticuadas da língia portugues
Em casa do Editor A.J.Fernabdes Lopes rua Áurea 132-34 Lisboa
MLCCCLXV




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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVIII LIVROS ILUMINADOS E OUTROS

>> quarta-feira, 8 de junho de 2016

Os mosteiros de mulheres na sua maioria não marcaram pelo seu nível intelectual. Eileen Power, falando dos mosteiros ingleses, escreve, que das monjas inglesas não ficou obra escrita, que nem mesmo alguma pequena crónica das coisas do seu mosteiro saiu de suas mãos. A autora contrasta esta pobreza literária dos mosteiros ingleses com a produção de obras saídas dos mosteiros femininos da Alemanha. No século IX, a abadia de Geldersheim na Saxónia era famosa pela sua literacia. No século XII, a abadessa Herrad, do mosteiro de Hohenberg compoz e iluminou uma enciclopédia. E nesse século, duas místicas, Hildegard de Bingen e Elisabeth de Schoenau escreveram sobre as suas visões. No século XIII, o convento de Helfta na Saxónia, era famoso pela sua vida cultural. AS suas monjas iluminavam e colecionavam livros, escreviam e aprendiam latim.
As monjas portuguesas, sem se poderem gabar do nível cultural das monjas alemãs, foram - literariamente - um pouco mais produtivas que as inglesas. Há que mencionar para a época de que nos ocupamos, e um pouco depois, o livro de uma freira do convento de Jesus em Aveiro, e outro de uma religiosa do mosteiro da Madre Deus de Xabregas. Primeiro em data, e em valor, é a ‘Crónica da Fundação do mosteiro de Jesus de Aveiro’, ao qual está apenso o ‘Memorial da Infanta Santa Joana’. A autora teria sido uma religiosa chamada Margarida Pinheiro. O livro é obra histórica de valor, uma verdadeira crónica com dados documentados. Contém considerações sobre a fundação do mosteiro e seus primeiros tempos, e dá um importantíssimo relato da entrada da infanta Dona Joana no mosteiro, e com a análise da sua pessoa.
O livro intitulado ‘Notícia da Fundação do convento da Madre de Deus de Lisboa de Religiosas descalças da primeira regra de Nossa Madre Santa Clara’. Data de 1639,e trata, segundo informa a autora, ‘de algumas coisas que ainda se puderam descobrir das vidas e mortes de muitas madres Santas que houve nelas’.
Sobre os objectivos do seu livro escreve a autora: ‘Sempre depois que entrei para esta casa, tenho ouvido queixas às que vivemos nela, de não haver alguma memória da sua fundação e das religiosas santas que daqui foram para o céu. Porque, ainda que no arquivo haja papeis que de tudo dão notícia, não é em forma que possamos ler quando queremos’. E no que tocava as religiosas, escreve ela, havia no arquivo muito pouco em comparação do que sabiam as religiosas mais velhas, com quem ela conversara. E mesmo elas diziam, ‘que não era nada o que me contavam pelo muito que lhes esquecia do que tinham ouvido a outras mais antigas que conheceram. De modo que se houvera feito caso de tudo o que se pudera escrever, se fizera um grande livro, e de muita edificação. ’Receando que se viesse a esquecer o que devia ser tão vivo, a autora metera mãos á obra. Não se achava com engenho para um livro na forma usual, diz ela, pelo que decidira escrever o livro em forma de diálogos entre algumas freiras. Era costume naquela casa, continua, festejar o Natal com aquilo que elas designavam por fogueiras de Natal. Eram reuniões que se faziam na casa onde estava o presépio, e em que se falava de coisas antigas, de freiras de cuja santidade se conservara a tradição, e de muita outra coisa que se dera no convento. A autora decide pois idear para o seu livro conversas realizadas em algumas dessas fogueiras. Os diálogos seriam entre uma madre abadessa, uma madre vigária e várias religiosas de nomes fictícios, tais como Fibronia, Maurícia, Malvina, Marcela, Sabina, Eufrazia, e outros do mesmo género.
Para o leitor de hoje, o livro é ilegível, mas a autora tinha veia de escritora, e a sua obra interessa à história monástica, e, evidentemente, à histórico daquele mosteiro. Em uma das ‘fogueiras’ fala-se da fundação do mosteiro pela rainha D.Leonor, e ficamos a saber muita coisa sobre obras que subsequentemente ali foram feitas, em particular por D. João III. Segundo uma das intervenientes, o rei deliciava-se com a perfeição religiosa que reinava na Madre Deus, encontrava ali o seu ideal de convento. Encantava-se, dizia outra interveniente, com os rigores que ali se observavam. Julgando agradar a Deus, as religiosas da Madre de Deus sujeitavam-se de vontade própria a terríveis mortificações, e viviam num constante regime de fome, que, ou as levava muito cedo deste mundo, ou as fazia morrer muito velhas As mortificações que aquelas mulheres se impunham a si próprias, os sacrifícios que desafiavam a razão, que a outros repugnariam, a D. João III agradavam. Se não tivessem outro valor, estes diálogos teriam sempre interesse pelo que revelam de certos aspectos da pessoa de D.João III. No mesmo diálogo fala-se de obras que se tinham feito no mosteiro, e que, por ordem do rei, se tinham aberto, umas janelas no ‘pináculo’. Era uma sala redonda sobre a capela-mor, de onde se gozava de uma larga vista. Algumas religiosas não gostaram da ideia, ajoelharam diante do rei, e - ‘extremos notáveis’, como observa a autora - pediram a Sua Alteza que tapasse as ditas janelas. D. João, encantado, ‘para lhes dar gosto’ - de se sacrificarem ainda mais - fez-lhes a vontade. Com o resultado, que, a partir daquela data a única coisa que se avistava do pináculo, era a horta da casa. O que se podia dispensar, observou Ludovina, uma das fictícias dialogantes, já que à horta viam elas quando lá iam. Ludovina achava que aquelas santas podiam ao menos ter deixado no pináculo uma fresta colocada a altura de poderem ver por ela. Só lhes tinham deixado uma fresta ‘muy altíssima’, à qual só chegavam pondo-se se em bicos dos pés. Nem todas as religiosas apreciavam as constantes visitas do rei, diz-se no diálogo. Certa vez uma anciã até empurrara Sua Alteza pela porta fora, aos gritos de “Rei fora, Rei fora”.
O mosteiro gabava-se de ser um dos mais nobres conventos do reino. Estava-se em tempo dos Filipes, e três das intervenientes - Metildes, Malvina, e Macária - lamentavam que já não houvesse em Lisboa nem Rei nem Paço, porque, quando ainda os havia, sucedia muitas vezes que damas do Paço ali tomassem o hábito. O que, segundo Metildes fora coisa de muita edificação e uma grande e poderosa ajuda para se sustentar o costume que havia naquele mosteiro de só se receber nele pessoas de muita qualidade e nobreza. Malvina concordava, era isso que sustentava a perfeição daquela casa, ‘porque a nobreza é mais briosa, e a conservação dela necessita de que o brio acompanhe o espírito. Porque quando este não é muito, ‘a honra procura arremedá-lo.’ Macária era da mesma opinião. E, quanto a ela, a autoridade delas era sustentada pelo que se dizia e sabia delas da porta afora. Aquilo de elas não falarem, nem as verem, nem querem ser vistas ‘nem com parentes mais chegados’ contribuía, achavam elas, para a sua boa fama.
Lorvão também se podia gabar da qualidade e nobreza das suas religiosas, mas não consta que estas pugnassem por serem conhecidas pelos seus sacrifícios e rigores. A
Ordem de Cister não favorecia mortificações, queria oração e trabalho. No arquivo de Lorvão encontram-se dois manuscritos de memórias de algum interesse, se bem que muito diferentes. Datam os dois do século XVII. São eles: o ‘’Livro das Preladas’, uma pequena obra sobre os acontecimentos mais ou menos curiosos sucedidos nos diversos abadessados desde a fundação de Lorvão como mosteiro cisterciense de mulheres. A autora serviu-se com certeza da documentação do arquivo, mas é pouco provável que conseguisse ler os documentos mais antigos. Tem o mérito de ter respeitado e transmitido a tradição oral, sempre de atender em história monástica. O seu interesse, como diz o título do livro, estava na vida das Preladas de Lorvão, e é uma valiosa fonte nesse campo.
Bem diferente é o ‘Livro de apontamentos de soror Joana de Jesus’. São as memórias dessa religiosa desde o dia em que, muito nova, saiu de casa de seus pais, e entrou para o mosteiro de Lorvão. Memórias que não escondem experiências místicas de natureza erótica. Que a autora provavelmente bão avaliava como tais.
Não é por estas obrinhas que Lorvão é hoje conhecido. Quando no sec. XIX se deu a extinção das Ordens religiosas, e os seus bens foram confiscados, revelaram-se ao público laico tesouros artísticos desconhecidos, e em particular, livros iluminados, quatro deles datando do século XII, que foi por toda a Europa o grande século do manuscrito iluminado. Era nos mosteiros que se centrava a vida cultural, foi nos mosteiros que se produziram os grandes livros iluminados. Esperava-se de um grande mosteiro que fosse rico em livros litúrgicos, e os próprios monges encarregavam-se da feitura desses livros.
Os monges negros de Lorvão seguiram decerto esse preceito. É provável que, ao serem forçados a abandonar o seu mosteiro, os monges tenham levado consigo alguns dos seus livros litúrgicos, deixando para trás aqueles que não se destinavam aos ofícios divinos. Ficaram em particular duas obras de excepcional qualidade. São eles o ‘Livro da Apocalipse’ e o ‘Livro das Aves’, ou ‘dos Passarinhos’. É uma cópia da obra De Avibus, da autoria de Hugues de Fouilloy frade da Ordem de Santo Agostinho entre 1132 e 1172. Data também desse século a ‘Exposição de Santo Agostinho sobre salmos’.



Quando em 1211 as monjas da Ordem de Cister substituíram em Lorvão os frades negros, a rainha D.Teresa, sua protectora, teve forçosamente de preencher alguma lacuna em livros litúrgicos.
São do século XIII, quando começou a haver copistas e iluminadores trabalhando fora dos mosteiros, os livros necessários para os ofícios religiosos que se encontraram em Lorvão. São também do século XIII, e talvez doados ao mosteiro pela Rainha, ou por algum devoto, os códices ‘régios’ - assim nomeados pela sua riqueza, - que o mosteiro possuía. São eles: um ‘Livro da Sagrada Escritura’, com inúmeras iluminuras de cenas sagradas e profanas; um ‘Testamento Velho’, com cenas bíblicas iluminadas a cores e oiro vivíssimo, e com muitas das suas páginas cuidadosamente protegidas por pedaços de seda. Ainda do século XIII são um Antifonário, e um Saltério, e dos séculos XIII ou XIV um livro de ‘Responsos do Canto-chão’, um ‘Evangelário’, e um livro da ‘Definição da Ordem de Cister’. Este datado de 1308. Datando do século XV há um missal, o conhecido por ‘Missal antigo de Lorvão’, mais um livro de ‘Responsos de Canto-chão’. Este último, datado da era de 1451, ano de 1412, portanto. Foi mandado executar por uma monja, e por ela oferecido ao mosteiro. Como se lê a fl. 5v do livro. ‘A muito honrada e virtuosa empobrecida em virtudes Inês Lourença Machada mandou fazer este livro aa (sic) honra de Deus e de seus santos, para serviço do mosteiro de Santa Maria de Lorvão. Feito na era do nascimento de mil quatrocentos e cinquenta e um anos’. ‘E por este livro deu dois nicos (sic) e meio de prata’. No século XVI houve de novo uma dádiva do mesmo género. Trata-se dos ‘Capítulos e Colecta que não tem o Breviário’, escritos ‘no ano do N.de J.C. de 1503 por frei Tomé, capelão do mosteiro de Lorvão’. A doadora é lembrada: ‘a muito virtuosa Margarida coelho, monja deste mosteiro mandou fazer este livro’, lê-se. Havia ainda do século XVI um ‘Processionário’ de 1504, livro de canto-chão para ser cantado em procissão segundo o rito cisterciense, um ‘Livro dos Hinos de Lorvão’, também de canto chão. Ainda do sec XVI são: um ‘Psaltério e Breviário’, uma ‘Regra do Glorioso Padre São Bento’, e um ‘Ritual Monástico’, este datado de 1547. Contem o cerimonial e ofício da recepção das noviças. Todas estas obras são ricas em iniciais fantásticas, em bordaduras de arabescos, e, no caso do ‘Ritual’ ornado de cenas figurando gente comum, homens e mulheres, trabalhando. Lorvão entrava com este livro nos tempos modernos. No primeiro milénio a arte cristã abandonara a figura humana, o homem era o veículo de uma alma, vivia para se livrar dos seus pecados e a sua alma alcançar o céu e a vida eterna. Ora, começando em Itália nos primeiros anos do século XV, com Beunelesqui, Donatello e Massaggio dera-se uma viragem na arquitetura, e na pintura. Descobrem-se de novo as artes da Grécia e da Roma antiga, grega, reconhecia-se que o homem era uma figura única, e que merecia ser reconhecida como tal. O artista pode finalmente pintar outra coisa que figuras de santos e santas, delicia-se em mostrar homens e mulheres em todos os momentos da vida. Os próprios livros de culto, e, em particular, os livros de Horas enchem-se de figuras seculares, de homens e mulheres nos seus lazeres e nas suas ocupações. Prefeito exemplo disso é o citado ‘Ritual de Lorvão’.

As monjas de Lorvão não se distinguiram por grandes obras literárias da sua mão, mas forram suficientemente cultas para saber apreciar os grandes livros que tinham à sua guarda, de cuidar da sua conservação - a humidade que permeava o mosteiro devia exigir contínua atenção - e de contribuíre-las mesmas para o seu enriquecimento do seu mosteiro com dádivas pessoais. 

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 4 - O CASO DE D. FILIPA EM ROMA

>> quarta-feira, 25 de maio de 2016



Parece coisa tão ínfima para um rei, e no entanto assim foi. D. João III teve em Roma quatro homens de grande nível ocupados em demonstrar que num solitário mosteiro em Portugal uma mulher que fora eleita sua abadessa, não o devia ser. Mas as diligências pouco adiantavam. Baltasar de Faria, que desde 1543 era ‘enviado’ de Portugal em Roma, o homem quem obtivera do Papa Paulo III a Bula que estabelecera em Portugal o Santo Ofício da Inquisição, fora agora encarregado do caso de D.Filipa. Estava encontrando inesperadas dificuldades. A 25 de Março de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, e depois ca recente confirmação dessa eleição pelo Papa, o Rei recebe carta de Faria narrando detalhadamente aquilo que e passava naquilo que designa por ‘caso de Lorvão’.    


D. João III
    
O Papa consentira que o caso fosse reexaminado, escreve Faria. Dera ordens ao seu Núncio em Lisboa para que se informasse pessoalmente do caso. Que ouvisse testemunhas, e que o referisse para Roma para que se resolvesse finalmente o Negócio. Havia três anos, que ele andava naquilo, escreve Faria, todos os dias insistindo com o Papa, até que este concedera agora este re-exame. Muito contrariado, porém, ‘com grandíssima dificuldade’. El-rei conhecia a natureza do Papa, já sabia que ele era ‘humbrioso’(sic). 


Papa Paolo III  E os sobrinhos
Ottavao e Alessssandro Farnese
(Tiziano)
                              O Papa era influenciado pelos que trabalhavam a favor de dona Filipa, escrevia Faria, e que lhe diziam que el-rei favorecia ‘don’Ana por alguns respeitos’. Ele provara que isso não era verdade, e conseguira que a nova solução se mantivesse em segredo até partir a carta para o Núncio. ‘Os de dona Filipa’ continuavam contudo a insistir junto do Papa, ‘todos os dias dão gritos ao Papa’. Era necessário que em Portugal se conseguissem prova convincentes ‘com a qual espero que Sua Santidade se quietará e dará fim a esta lide, que há sido a mais renhida de quantas há na Rota’. O cardeal Santa Frol trabalhara muito bem naquele assunto, acrescentava Faria, seria bom que o rei lho agradecesse.6
Dois anos depois tudo estava na mesma. Eram precisos mais esforços da parte de Lisboa, escrevia Faria a 15 de Junho de 1548. Seria bom que o el-Rei ou a Rainha escrevessem aos cardeais Farnese e Santa Frol, dando-lhes conta que dona Filipa não queria a concórdia na forma que Sua Santidade ordenara.7 Um mês depois, nova paragem no negócio. O Papa insistia em que tinha de se fazer justiça, e justiça era, na opinião da Rota, julgar a favor de dona Filipa.8 ‘Poucos dias há que avizei Vossa Alteza como tendo Sua Santidade dado comissão para que se procedesse na causa de Lorvão a instância da parte adversa’, escreve Baltasar de Faria a 8 de Julho de 1548. Ele acudira logo, fazendo revocar o que a parte adversa adiantara. Mas Sua Santidade, ‘ou movido por más informações, ou por lhe parecer que nisso mostrava seu valor, ou por qualquer outro respeito’, ordenara que o juiz da causa procedesse, dizendo que, ao agir assim, obedecia aos desejos de D. João III. Ironia, que arrasava Faria: ‘De modo que debaixo deste nome se quis justificar, e não bastou fazer-se nisso tudo aquilo que se pode imaginar para o desviar deste propósito, porque não ficou nada por fazer de minha parte, metendo nisso cardeais servidores de Vossa Alteza, acreminando-lhes (sic) o caso como era necessário, e tudo o mais que me pareceu a propósito’. O embaixador de Portugal, D.João de Meneses, também trabalhava no ‘negócio’, tanto junto do Papa, como junto dos cardeais Farnese e Santa Frol, ‘mas nenhuma coisa aproveitou, o Papa escusando-se sempre que justiça havia de haver seu lugar’. O embaixador explicava-se sobre o decorrer da causa, e o que ele fizera para adiantar. Já escrevera a Sua Alteza sobre o que se passava no negócio de Lorvão, agora podia informar que, tendo o Papa regressado de Frescata, ele lhe pedira audiência, e se queixara da pouca atenção que se haviam dado aos desejos e às razões de el-rei D. João III. Não era possível que Sua Santidade não soubesse ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram o zelo e o cuidado do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’. A isso, e ao mais que ele dissera ao Papa, a resposta de Sua Santidade fora, ‘que não podia deixar de mandar à Rota que fizesse o que fosse justiça’. Ao que ele retorquira, que era isso mesmo que o seu Rei queria. Se ele não o quisesse por justiça, não estaria há tantos anos tratando daquela causa em Roma. Ele lembrara também ao Papa os escândalos que se poderiam seguir, se dona Filipa fosse abadessa Ao que o Papa respondera, que a Rota vira todos os pontos de uma parte e da outra, e julgara o caso da forma que lhe parecia ser justiça. O mais que podia fazer, era fechar os olhos, se D. João ‘como senhor e Rei da terra, que vê claramente os escândalos e inconvenientes dessa mulher ser abadessa’ não o consentisse, e fizesse o que lhe parecesse mais ‘serviço de Deus’.
O embaixador contestara, replicando ‘mil coisas’, até que Sua Santidade, ‘desejando achar uma tábua a que se acolhesse’, lhe dissera que, possivelmente, não estava bem informado, mas que o que lhe parecia era que aquilo não devia tocar muito ao rei, a não ser por querer favorecer a dona Ana Coutinho. ‘Isto, indigna-se o embaixador, quando Baltazar de Faria gastara os bofes com gritos e lamentos, e dito e feito naquele caso tudo quanto podia. Era de perder a cabeça. E não havia ‘causa mais publica na Rota nem nela coisa mais referida’.9
Finalmente Baltazar de Faria julga ver luz no horizonte. A 4 de Setembro de 1549 o enviado informa D. João III, que o caso de Lorvão se resolvera. Só até certo ponto, era verdade. ‘Depois de muito trabalho, e fadiga, que seria para nunca acabar haver-se de dar contas’, o negócio de Lorvão resolvera-se da seguinte maneira: Decidira-se, que o caso era afinal um caso de direito à posse dos bens do mosteiro, e, como a esses, dona Filipa de facto não tinha direito, dona Ana podia ficar no mosteiro. Era um compromisso, e muito duvidoso. ‘Ainda não havia a certeza da solução ser aceite por parte de dona Filipa’. E ela já agira. ‘Da parte de dona Filipa, como disto tiveram notícia, vendo desbaratado seu desenho, fizeram grandes clamores a Sua Santidade e todavia o vão informando com advogados consistoriais, ajudando-se de todo o favôr que podem’.
O caso de facto ainda se arrastaria, e não foi nunca resolvido declaradamente a favor de D. João III. Não pode haver duvida que D.Filipa teve poderosos apoios em Roma, mas quem foram? Não encontrei resposta. Baltasar Faria fala em ‘os de dona Filipa,’  o embaixador do rei dizia que ela tinha o apoio de ‘fugidos da Inquisição.’ O que é possível, considerando que era preciso dinheiro para ganhar apoios influentes em Roma, e a própria D. Filipa não o tinha de certeza. E não podia ter os conhecimentos necessários para a partir do mosteiro de Celas contactar gente influente em Roma. Consta que ela teve um conselheiro activo no abade Pedro de São Paulo de Almavisa, pequeno mosteiro de monges cistercienses perto de Coimbra. E talvez esteja nessa ajuda do abade de Almaviza a D. Filipa a explicação para que D. João III tivesse pedido a Júlio III, sucessor de Paulo III, que os bens de S. Paulo de Almaziva fossem transferidos para o instituição de ensino em Coimbra. O novo Papa acedeu e no ano de 1555, o mosteiro de onde o abade Pedro aconselhara D. Filipa d’Eça, era anexado ao Colégio do Espírito Santo em Coimbra.
             Quanto ao fundo da questão do rei contra D. Filipa d’Eça, tem decerto explicação na falsa ideia que D. João III fazia da vida monástica. Em uma das suas cartas dirigidas ao Papa o embaixador de Portugal escreve, que não era possível, que Sua Santidade não soubesse, ‘o que, entre turcos e mouros, era tão notório’, que eram ‘o zelo e o cuidado’ do rei de Portugal na reformação dos mosteiros do Reino. Fizera-o em todos os mosteiros, e o mesmo queria fazer em Lorvão. Ora, se Sua Santidade acreditava que assim era, porque é que admitia ouvir naquela causa a dois ‘fugidos da Inquisição?’.
É que Paulo III, educado no Humanismo, era menos inquisidor que D. João III. Ele teria compreendido que o rei favorecesse Dona Ana Coutinho por consideração pessoal - mesmo amorosa - mas não via razão para afastar D. Filipa pelo facto de ela, como as suas duas antecessoras, não favorecerem excessivos rigores no seu mosteiro.
Dona Filipa não veio a ocupar o lugar de abadessa em Lorvão, mas as coisas apaziguaram com o abadessado de dona Catarina de Albuquerque, que governaria até à sua morte. Foi a última abadessa perpétua em Lorvão. No ‘Livro das Preladas’ lê-se que, no ano de 1605, tendo morrido a abadessa dona Catharina de Albuquerque, e o Dom abade de Alcobaça, ‘estando presente no dito mosteiro à grade da igreja dele, para efeito de eleger nova prelada’, ele perguntara à madre prioresa e convento, se ‘eram contentes’ de elegerem prelada trienal, ou se queriam que esta fosse perpétua como até então tinha sido. Prioresa e convento tinham respondido, ‘de voto comum e sem discrepância alguma’, que queriam que as preladas, que dali em diante se elegessem, fossem trienais, e que dessa forma se começasse logo naquela eleição. E declararam mais, que renunciavam a ‘qualquer direito e accão, se algumas tinham, na eleição das abadessas perpétuas, por entenderem em suas consciências ser assim mais serviço de Deus e proveito espiritual e temporal do mosteiro.’ E assim sucedeu. Uma nova era começou no mosteiro de Santa Maria de Lorvão.

Nota: Na próxima semana não haverá publicação, retomaremos daqui 15 dias


6 T.T.  G25 de Março de 1546, oito anos depois do fatídico dia da eleição de dona Filipa, o Rei recebe carta de avetas da Torre do Tombo II, 5.45
7 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-60)

8 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-30
9 T.T. Gavetas da Torre do Tombo II,5-50

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 3 - REVOLTAS

>> quarta-feira, 18 de maio de 2016

Aquela empresa podia ser dada por concluída, mas no mosteiro reinava um clima de revolta. A abadessa imposta pelo rei não conseguira conquistar a obediência das monjas, acabando por se retirar de novo para Arouca. -lhe uma sua sobrinha, dona Ana Coutinho, também monja de Arouca.
Era de novo uma escolha de D. João III ou do Cardeal-Infante, que, ambos eram regularmente informados do que se passava em Lorvão Em Dezembro de 1542 há de novo revolta contra a abadessa. Uma das mais insubordinadas era uma monja chamada Leonor Telles. A abadessa queria despachá-la para outro mosteiro, D. Leonor resistia, declarava que não saía de Lorvão.

Mosteiro de Arouca

Avisado, o rei tomou o caso a sério. Escreveu para Coimbra ao Juiz de fora Bartolomeu Fernandes. Que este, caso a dita dona Leonor se negasse a sair do dito mosteiro a bem, e a abadessa o requeresse, fosse a Lorvão e tratasse pessoalmente da ‘modança da dita dona Leanor’. O juiz devia agir com muita diligência e com toda temperança, de maneira que a coisa se fizesse ‘com menos escândalo e alvoroço’ possível.
O juiz obedeceu, foi a Lorvão, é recebido por dona Ana Coutinho, e combina com esta a forma e o dia da transferência da insubmissa dona Leonor. A coisa resolveu-se aparentemente a bem, quando juiz, no dia combinado, se apresentou no mosteiro para tratar da transferência, foi-lhe dito que dona Leonor, perante a ameaça de ser levada dali à força, se não saísse às boas, se decidira a partir, e já se fora. Juiz e Abadessa congratulavam-se com o feliz desfecho do incidente, quando, estando o juiz ainda falando com dona Ana no parlatório, apareceu uma religiosa, dizendo ao Juiz, que as freiras ‘das partes de dona Filipa d’Eça’ lhe queriam falar. E logo ali viera ‘uma soma de mulheres freiras’, escreve o tabelião que acompanhara o Juiz. Eram umas vinte ou trinta, segundo ele, as quais, todas juntas, ‘se vieram onde a dita dona Ana Coutinho abadessa estava, e todas juntamente alevantaram grande grita (sic), e fizeram grande alvoroço, todas contra a dita abadessa. Gritavam, batiam as palmas, e diziam que lhe levantavam a obediência, e não haviam de ir ao coro, nem obedecer a seus mandados. O juiz dizia-lhes que se calassem, falando muito alto, porque estavam na casa da grade, e separados por duas grades. Uma de ferro, outra de pau’, especifica o notário. O Juiz dizia às religiosas, da parte de el-rei, que se calassem, e que não fizessem mal á abadessa, sua prelada. Dona Leonor Telles já saíra dali por mandado de Sua Alteza.’  ‘Elas não se calavam. Continuavam a falar ‘muitas indignidades, e rijo, contra a abadessa’. A ele, tabelião, e aos outros oficiais que ali presentes, queria parecer, que as monjas se teriam ‘enviado’ a abadessa e a teriam maltratado, se não fosse o juiz as ameaçar com ‘grandes vozes’ que procederia contra elas, caso não se calassem e se recolhessem. O que finalmente tinham feito. Recolhendo-se ‘indignadas e com muita fúria’.3
Fora do mosteiro, as coisas não tinham estado paradas. Tanto dona Filipa d’Eça - a ‘Eleita’ - como dona Ana Coutinho - a ‘Intrusa’ - tinham apresentado os seus casos em Roma. E quem diz Dona Ana Coutinho, diz D. João III. Não é fácil entender, quem dos dois contendores, D. João III ou D. Filipa, agiu primeiro. Se o rei levara a causa a Roma para justificar a sua acção, expulsando do mosteiro uma abadessa canonicamente eleita, ou se agira em Roma por saber que D. Filipa levara lá o seu caso, e estava a ser muito bem até As forças não eram iguais. O rei tinha em Roma o seu embaixador, e aquilo que então se chamava um ‘enviado’, o homem conhecedor das minúcias da corte papal, e activo nos negócios diplomáticos. Dois conceituados cardeais, Farnese e Santa Frol, trabalhavam por Portugal, ou melhor, eram gratificados para trabalhar por Portugal. De parte de dona Filipa, refugiada no mosteiro de Celas em Coimbra, pouco era se esperar. Não se apresentavam, e menos, se defendiam causas em Roma sem meios financeiros, e sem apoios superiores. Ora, mesmo eu dispusesse deles, D. Filipa não podia agir sem ser aconselhada por quem estivesse dentro dos tramites daquelas questões. Consta que D. Filipa teve esse conselheiro na pessoa do abade do pequeno mosteiro de frades cistercienses em São Paulo de Salavisa, pero de Coimbra.
Fosse como fosse, o facto é que, em Dezembro de 1543, cinco anos após ser eleita abadessa de Lorvão e de lá ter sido expulsa a eleição de D. Filipa d’Eça era superiormente reconhecida, e confirmada por sentença papal.
D. João é notificado, e escreve de imediato a D. Filipa. A missiva do Rei é datada de Almeirim, ‘primeiro dia do mês de Dezembro de 1543, e diz:4.

‘Eu são informado que vós tendes havido da Rota executarias com vossas três sentenças sobre a posse e finitos da abadia de Lorvão, pelo que vos encomendamos muito que, vindo-vos as ditas executórias, não useis delas sem me primeiro as enviardes mostrar para eu as ver e prover nisso como for justiça.’ E não queria que ela continuasse a viver em Celas, comunicando com Lorvão ‘dando vexação’ às monjas do mosteiro. Esperava que ela tivesse esse seu desejo em conta, e se afastasse dali para mais de 15 léguas. Ele receberia disso prazer e serviço e o agradeceria muito. Dona Filipa respondeu, que recebera entretanto as sentenças dadas na Rota papal a seu favor. Era de crer, escrevia ela, que em Roma não julgariam a seu favor, sendo ela tão desfavorecido no reino como era, se a razão não estivesse de seu lado, ‘se me não sobejava na justiça pano para mangas’. Agora, que recebera as sentenças, podia falar sem receio, declarava, que não tencionava ceder no que era seu direito reconhecido pelas sentenças papais. Assinava: “De Vossa Alteza, abadessa de Lorvão dona filipa D’Eça ”A notícia da sentença favorável a dona Filipa soubera-se naturalmente em Lorvão, e as suas adeptas rejubilaram. Esperavam ver a sentença cumprida, e a abadessa por elas eleita, de novo no seu cargo. Como nada sucedesse, escreveram ao rei. A carta é de 3 de Fevereiro de 1544. Estranhavam, dizem aquelas religiosas, que, tendo elas escrito tantas vezes e com tanta verdade, a Sua Alteza, nunca tivessem tido resposta, e que Sua Alteza as deixasse à mercê das maldades de dona Ana. As anciãs, e a maior parte do convento e religiosas do convento, que tinham elegido a Filipa d’Eça por abadessa do seu mosteiro, informavam Sua Alteza, que viera um breve do Santo Padre, ordenando o secreto das rendas do dito mosteiro, para que dona Ana Coutinho não lhes pudesse tocar. E que o Juiz encarregado do dito sequestro, lhes dissera dele o necessário. Isso não sucedera. Não era a primeira vez que escreviam a Sua Alteza, contando como eram vexadas e desonradas. Agora pediam que el-rei, por pessoa insuspeita, mandasse tirar inquirição daquilo que dona Ana Coutinho lhes fazia. ‘Não era mulher para pessoa sofrer’. Se elas se queixavam, era porque as coisas eram mais do que se podia dizer. Elas eram mulheres fracas e enfermas, e não sabiam por quanto tempo poderiam resistir aos males e injustiças de que eram alvo. Havia doze ou treze monjas no cárcere ‘Deus haja misericórdia de nossas almas’.

Cárcere Monástico

Pediam de novo a Sua Alteza, que interviesse, para que não houvesse naquela casa ‘tantas exorbitâncias (sic), pois é Rei Cristianíssimo de que esperamos Justiça’. Esperavam que Sua Alteza não fizesse com aquela carta o que fizera com as outras, que elas lhe tinham escrito. Que lhes desse ouvidos, e não acreditasse falsas informações delas. "Oiça-nos, pois lhe pedimos justiça e mercê e por verdade nos assinamos aqui todas”. Seguem-se as assinaturas de quarenta e quatro religiosas. D. João continuou a ignorar pedidos, ou não recebeu as cartas que lhe eram dirigidas. As cartas escritas do mosteiro eram decerto na sua maioria apreendidas. Pois apesar da vigilância que decerto existia, uma carta dirigida pela mesma ocasião a dona Filipa lhe chegou às suas mãos, e foi por ela enviada a D. João. A carta, dirigida ‘À muito ilustre e magnífica Senhora, a senhora Dona Filipa d’Eça, abadessa de Lorvão minha senhora’ , é assinada por dona Violante de Castro. Dona Violante agradece a carta de dona Filipa, que lhe chegara às mãos. Fora consolação ver letra de Sua Senhoria em tempo em que tinham tanta necessidade dela, quando andavam todas ‘tão atribuladas e cheias de paixão’ com as coisas que dona Ana Coutinho lhes fazia. Não se poderia sofrer aquilo por muito tempo, ‘porque de duas há-de ser uma: ou morrermos todas juntas, ou fazermos mil desatinos como este que agora fez dona Ursula de Sotto Maior, filha de dom Nuno e dona Isabel sua mulher, que se vira tão desesperada com má vida e muita perseguição suas, e vitupérios e desprezos que lhe fez.’ Muitas vezes lhe ouviram dizer, que, ou se havia de matar, ou fugir. Na última Quinta-feira de Fevereiro, deram por falta dela. Não lhes parecia que pudesse ter fugido, por ela ser muito nova, e não conhecer ali ninguém. Além de que era muito virtuosa. Viriam a saber, que a desesperação dela fora tão grande, que lhe fez parecer que poderia fugir, e ir ter a casa de sua mãe. Procurara fugir por um telhado, mas, estando nele, enfraquecera de tal maneira, que descera de novo, e se fora esconder no sótão da casa de lavor. E ali ficara quatro dias e quatro noites, sem comer e sem beber, ‘com desejo e determinação de se deixar morrer assim desesperada antes que se tornar ao poder desta mulher’. Ao quinto dia do seu desaparecimento foi sentida de uma religiosa, que a fez sair do buraco onde estava. Parecendo já mais coisa do outro mundo do que daquele, escreve dona Violante. “Nós, quando a vimos, não se podemos dizer o prazer que tivemos e as muitas lágrimas que com ela chorámos’ A Intrusa - dona Ana Coutinho - não a quisera ver, e no dia seguinte ‘se foi a Cabido e a mandou levar lá, e, depois de a vituperar e desonrar, e assim a todo o convento,’ mandara-lhe tirar o hábito e véu preto, e fizera- lhe vestir uma mantilha de burel, que a cobria até aos pés, e pô-la no grau mais abaixo de todos. E ordenara que às Sextas- feiras jejuasse pão e água, e que sempre comesse em terra, e ‘fosse em cruz toda (sic). E, de cada vez que acabassem as horas, se deitasse à porta da igreja estirada’. Todas se tinham indignado, e todo o convento se levantara, e se pusera de joelhos, pedindo-lhe ‘que se houvesse com ela piedosamente, e não lhe quisesse dar azo outra vez a tentar. Pediram-lho todas, e com tantas lágrimas, ‘que não houvera coração, por duro que fora, que se não demovera’ Pois a Intrusa, não cedera, ficara antes mais furiosa. Até Violante d’Azevedo, que era tão partidária dela como todas sabiam, ela empurrara com tanta força, que quase a ditara ao chão. Quando ela fazia isto a uma mulher tão velha, e que sempre fora coxa, ‘julgue Vossa Senhoria o que fará a outras’.  Por fim, a abadessa castigara a todas tirando-lhes um dos pães até à Páscoa. Mas o que elas mais sentiam, escrevia a autora da carta, era que ninguém acreditaria no mal delas, porque elas mesmas, que o padeciam, não o conseguiam dizer, porque as coisas eram tantas e tão grandes, ‘que por umas (se) esquecem as outras, e fica em nossa memória o que elas causam. Que são muitas enfermidades desvairadas e tanta magreza, que todas parecemos tísicas’. Se Deus não se lembrasse delas, e lhes trouxesse dona Filipa de volta, e as livrasse de dona Ana, ela tinha a certeza que muitas delas morreriam. ‘Se nos Vossa Senhoria de alguma maneira poder acorrer, faça-o, por amor de Nosso Senhor ao menos. Pois, já (que) os corpos estão destruídos, não percamos as almas, que é impossível poderem-se salvar em tal poder. As queixas soam a verdade, e nem todas as cartas que foram dirigidas ao Rei foram confiscadas. Ele não podia ignorar por completo o que se passava. Seria difícil perceber com, sabendo-o, não lhes deu remédio, se não houvesse claros indícios - já apontados -, de que D. João tinha uma concepção inquisitorial da religião, e estava perfeitamente de acordo com os rigores impostos às monjas pela abadessa por ele nomeada.






3 T.T. Corpo Cronológico Mº 73 Nº27
4 T.T. Corpo Cronológico Maço 74 nr. 28
5 T.T: Gavetas. Maço XV-1-31

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 2 - A EXPLUSÃO

>> quinta-feira, 12 de maio de 2016

Colocado perante a eleição de D. Filipa, que dois bacharéis não tinham sabido impedir, o rei nomeia novo magistrado para tratar do caso. Magistrados de Coimbra tinham demasiadas ligações com o grande mosteiro. Era mais que certo, que lhes faltava ânimo e entusiasmo para expulsar uma dona Filipa d’Eça, que fora eleita abadessa. D. João encarregou desta vez a missão ao doutor Gaspar Vaz, um juiz que tinha a grande qualidade de não ser de Coimbra. Saberia correr com dona Filipa e colocar outra abadessa em seu lugar. Estava já escolhida. Tratava-se de dona Melícia de Melo, monja de Arouca. Dona Mélicia encontrava-se há tempos instalada em Botão, na quinta que o mosteiro ali tinha, esperando pelo momento em que houvesse finalmente um juiz capaz de a instalar à cabeça do mosteiro. O rei declarava estar apoiado nessa medida pelo Cardeal Infante, que era este quem indicara dona Melícia de Melo - abadessa de Arouca. - para o abadessado de Lorvão. O Cardeal dera as suas ordens ‘pelas quais deveis vós – o Dr. Gaspar Vaz - tomar posse do dito mosteiro de Lorvão.’ A prioresa e as monjas do mosteiro deviam obedecer às ordens do Cardeal Infante, e receber como sua, a abadessa por ele, Cardeal, indicara. Sua Eminência ordenava mais, que dona Filipa, que estava no dito mosteiro de Lorvão, e dizia ter sido eleita nele, saísse de lá. Devia largar a posse. que dizia ter dele, e entregá-la ‘livre e expeditamente’. O Cardeal, juntamente com Dom Augusto, bispo d’Angra, fizera já processo à dita dona Filipa. O doutor Gaspar Vaz tinha plena autoridade para executar aquela missão: ‘vos designo e certifico como tendo a vara (sic) de magistrado’. Logo que o doutor Gaspar Vaz recebesse aquela carta, iria a Lorvão, levando consigo as forças que lhe parecessem necessárias para se fazer obedecer. Uma vez chegado ao mosteiro, diria à dita dona Filipa, que saísse de lá, e obedecesse em tudo às ordens do senhor Cardeal e dos seus delegados, ‘notificando- lhe a ela, da minha parte, que a isso tenho por serviço de Deus e meu. E que cumpra em tudo a dita ordem que vos confio’. Caso dona Filipa não obedecesse, o juiz podia usar de força. ‘Podeis tirá-la fora do dito mosteiro e sítio de Lorvão pela força e contra sua vontade’, escrevia ainda o rei. Notificaria disso a prioresa e as religiosas, ordenando-lhes, que obedecessem às ordens do Cardeal. E dizendo-lhes da parte dele, Rei, que lhe abrissem as portas do dito mosteiro, visto ele ter mandato para ‘expulsar a dita Dona Filipa e pôr na posse a dita Dona Milícia de Melo’. Prevendo o caso de dona Filipa não obedecer, e das monjas estarem de seu lado, D. João dava claras instruções sobre como proceder. O juiz, com os homens que para isso levava, abriria as portas do mosteiro com os fortes, ‘se bem que honestos, modos, que pudesse, e extrairia dele à dita Dona Filipa’. Se a prioresa e as monjas quisessem vir onde o juiz estivesse para saber o que se passava, o doutor juiz podia permiti-lo. Em seguida diria à porteira para lhe abrir as portas, e, se ela não o fizesse, mandaria abri-las pela força. E entraria no dito mosteiro: ‘com a advertência que, quando entrardes, não fáceis desonestidade, nem nada que não seja devido’. Mandaria pôr portas novas em todo o mosteiro, ficando com as chaves de tudo, advertindo as oficiais, que não tirassem nada do que havia na casa. Uma vez isto feito, o juiz enviaria ao lugar do Botão buscar a dona Melícia, e a instalaria na posse do mosteiro, entregando-lhe as chaves deste. Ordenaria às habitantes dele, aos seus rendeiros, enfiteutes e colonos ‘e todas as outras pessoas a quem interesse’, que obedecessem e reconhecessem a abadessa dona Melícia, e lhe entregassem as rendas do dito mosteiro Obedecendo a estas instruções, o doutor Gaspar Vaz, que, na altura de receber a carta do rei, se encontrava em Coimbra, partiu para Lorvão. Chegou no ‘oitavo dia do mês de Abril, véspera da Páscoa da ressurreição’ do ano de 1538’. O notário que anotou os acontecimentos, enumera um por um os doutores e executores que se deslocaram a Lorvão.

Magistrados e Mensageiro
Além de Gaspar Vaz nomeia a Bartolomeu Fernandes, esse, sim, juiz da cidade de Coimbra, acompanhado de seus Prectoribus, sive barresteris, com escrivãos das chancelarias. Presentes ainda: Pedro Tagarra, executor e bacharel do dito juiz; Jorge Dias, Pedro Dias, Gonçalo de Lamego, Jorge Vaz e Henrique Brandeiro, todos tabeliães e habitantes da cidade de Coimbra; Benedito Fernandes e Sebastião Vaz, mensageiros; Hilário e João Fernandes, e outros homens e soldados dos bacharéis. Cristovão Fernandes e Deus dado Peres, ferreiros. E muita outra gente, a pé, a cavalo, e esta armada de flechas e escopos e pês ‘ou o quer que seja’.
E ainda António de Sá, executor, João Cerveira, notário, João Fernandes, escrivão de notário, e Afonso Fernandes, seu mensageiro: ‘E com esses magistrados vinham os ditos ferreiros, com serras e escopos e outras ferramentas para com eles abrirem e demolirem as portas do dito mosteiro, como com efeito fizeram, semeando pavor e criando terror’, comenta o autor do relato. Aproximando-se das portas, os homens procuraram abri-las com traves de ferro. Então apareceram à porta do mosteiro o doutor Francisco Mendes, e o procurador do mosteiro, os quais, declararam, que vinham da parte de dona Filipa d’Eça e do seu convento saber ao que vinham. O doutor Gaspar Vaz disse das ordens que trazia, e que pretendia entregá-las. Então, anota o notário, ‘perante mim, notário público e testemunhas abaixo indicadas, compareceram em pessoa dona Filipa d’Eça, abadessa eleita do dito mosteiro, e a mim me disse, que era verdade que, como o dito mosteiro vacasse por morte de Margarida d’Eça, última abadessa, as religiosas do mosteiro fizeram a sua eleição, na qual fora ela própria eleita por abadessa pelas anciãs e pela maior parte daquele mosteiro no dia 11 de Fevereiro ano de 1538’. Desde esse tempo estivera sempre em pacífica posse, estando à frente do dito mosteiro com a obediência das supraditas religiosas. Quanto à carta que el-rei lhes enviava, Dona Filipa e as religiosas declararam que não iriam ao locutório recebê-la. Os notários anotaram-no devidamente: ‘e disso fizeram acta o doutor Francisco Mendes e o licenciado João Vaz’. No entanto, passado algum tempo, aquelas senhoras reconsideraram. Dona Filipa e algumas monjas vieram às janelas, e disseram que se tinham aconselhado com seus procuradores, e ouvido o magistrado enviado por el-rei, e que, tendo-as o dito magistrado feito ir ali sob pena de exílio, elas, ‘setenta e cinco mulheres mais ou menos’, aceitavam ouvir a carta de el-rei, e responder-lhe. O doutor Gaspar Vaz veio então com ‘seus oficiais de justiça e a supradita gente’, e dissera, que vinha da parte de el-Rei, o qual mandava que a dita dona Filipa saísse espontaneamente do mosteiro para outro local, E que ele a expulsasse caso ela não obedecesse. Exibira a carta, e as monjas leram-na. O doutor Francisco Mendes, respondeu pelo convento que a dita ‘Dona Filipa, eleita, e a maior parte das suas religiosas e convento’ queriam saber, se o juiz ‘lhes dava licença para que movessem justiça da dita Dona Eleita, se bem que o debate fosse com o Rei Nosso senhor, e tivessem visto as ditas ordens’. O juiz dissera que lhes dava licença. Da parte da dita dona Filipa fora então levantada a questão do braço secular. Que o bacharel Sebastião Lopes já quisera usar dele, diziam, e viam que Sua Alteza pretendia fazê-lo de novo. Elas queriam apresentar por escrito a sua oposição a esse acto. O juiz retorquiu, que ele era simples executor, que ‘não era defensor, salvo de actos para que tenha sido designado pelo Rei. Que, contudo, lhes dava uma hora para que a dita Eleita e o convento consultassem o que queriam fazer’. Ao fim da hora, o procurador do mosteiro dava conta do resultado da consulta. A dita Eleita, e o seu convento, não admitiam apelação a nenhuma justiça eclesiástica ou secular. Elas tinham o apoio ‘do Santíssimo Senhor nosso Papa Paulo 3º’ para que não se partissem as portas do seu mosteiro, nem se intrometessem nele, pondo a mão sobre dona Filipa, visto ela ser abadessa e sagrada, e que também o mosteiro era consagrado’. Caso procedessem da dita forma contra elas, ofenderiam o próprio Santo Padre, sob cuja protecção e defesa elas já tinham posto as suas pessoas, e o seu mosteiro com seus rendimentos. Já tinham também falado a cardeais e ministros do Papa para que se opusessem ao parecer do bispo de Angra e aos enviados do rei. Perante esta resposta, o juiz não esperou mais, deu ordem aos serralheiros para arrombarem as portas. O que eles fizeram ‘com machados, escopos, serras e outras ferramentas’, escreve o notário. Os homens irromperam então por ali dentro.com o juiz Gonçalo Vaz à frente. O notário não perdia pitada. Competia-lhe anotar, anotava. Anotou que a dita Eleita e as religiosas clamavam pelo auxílio de Deus e do Papa, que gritavam que ‘todos eram testemunhos, que as espoliavam, e com oposição delas entravam em seu santo mosteiro, cujas portas partiram, querendo, contra justiça, tirar de lá a que canonicamente fizeram abadessa, elegendo-a em justa forma, segundo seus privilégios’. Aquelas religiosas tinham-se refugiado no coro, onde se encontravam já outras monjas ‘recitando as suas loas, pois que era a vigília de Páscoa da Ressurreição’. Seriam umas setenta e cinco religiosas, as que em seguida ali se fecharam e fortificaram ‘com ferros fortes e outras muitas ferramentas’, e colocando ainda uma trave na porta do coro. Pondo os braços nessa trave, conseguiram durante algum tempo impedir a entrada dos homens do juiz, até ao momento em que um deles, o soldado bacharel Benedito Fernandes, feriu uma das religiosas com um corte no braço. As companheiras acudiram-lhe, permitindo assim que juízes e oficiais penetrassem no coro ‘pela força das armas’, ‘Dona Filipa eleita’ estava sentada numa cadeira, relata o notário, e, em sua roda, ‘como seu sustentáculo’, estavam as outras religiosas com a cruz alçada, cantando em uma só e alta voz: ‘in exit Israel de Egitii et super flumen Babilonis etc’ As religiosas continuavam lutando com o juiz e os seus oficiais para defender a abadessa, ‘chegando-lhes às mãos, até que eles chegaram à cadeira onde estava a dita dona Filipa Eleita’. Juiz, e bacharel, e escrivães, prenderam-lhe então as mãos e corpo, e, ‘horrivelmente rasgaram-lhe as vestes em parte, e trouxeram-na para o coro inferior, e, sem parar até ao coro da Igreja’. Ali colocaram-na ‘numa qualquer cadeira de madeira, digo, arrastaram-na a ela, - emenda o notário conscienciosamente - anunciando que discordavam, de que ela fosse abadessa benedita e sagrada’. Ao que dona Filipa retorquira, que era abadessa sagrada, sim, e que todos que ali estavam eram testemunhas, de como, por força e violência, a espoliavam da sua posse. Ela tinha instrumentos do Santo Padre e seus auditores, de como era abadessa benta e consagrada do mosteiro de que era expelida. E mais, era filha de D. Pedro d’Eça, bisneto de D. João, filho d’el rei D. Pedro, e já por isso, ao desonrarem a qualidade da sua pessoa, incorriam - como já lhe fora dito pela Cúria Romana - em pena de dez mil ducados por violência de direitos, e todas as outras multas, que eram aplicadas pela própria Câmara Secreta. As outras religiosas continuavam a defender-se, ‘e de tal forma, escreve o notário, ‘que algumas pessoas puseram mãos desonestas em dona Filipa, e a arrastaram até ao scriptorium do dito mosteiro, onde a puseram’. E então, como o juiz o tivesse autorizado, todas as religiosas, ‘umas sessenta ou setenta’, entre as quais a Prioresa e outras anciãs, aproximaram-se da cadeira de dona Filipa. E todas, ‘de que qualidade fossem’, aproximaram-se, e lhe beijaram as mãos, e a honraram, dizendo que ela era, e seria sempre a sua prelada e abadessa, que, para isso, elas a tinham elegido e dado obediência. E que as eleições por elas feitas, elas as consideravam válidas e ratificadas, e protestavam, que não obedeceriam a dona Melícia, nem por força, nem por nenhuma outra forma. Apoiavam declaradamente a Dona Eleita, sua prelada, e protestavam que por isso não incorriam em excomunhão nem em desobediência’. E para que Sua Santidade pudesse fazer justiça, restituindo-lhes a abadessa que tinham elegido segundo os seus estatutos, pediam aos notários e tabeliães ali presentes, que lhes dessem instrumentos do que tinham testemunhado. ‘E de todos os lados’, anota o notário, ‘se ouvia que elas eram filhas de Claraval, da Ordem de Cister, e portanto súbditas imediatas de Sua Santidade o Papa. El-rei e o Cardeal podiam dispor dos seus corpos e vidas, mas queriam arrancar-lhe as suas almas, e elas não reconheciam juramento a não ser ao Papa, aos superiores e abade de Claraval e cardiais. E muito mais disseram, escreve o notário, até que dona Filipa fora levada para fora’. Foia ‘lançada através das portas fora’, e transportada a um hospício que ali havia, pertencente a certas mulheres etíopes, que tinham sido servas do mosteiro. O Juiz entregou então as chaves do mosteiro a dona Melícia de Melo, nomeou outras oficiais para as diversas oficinas, e, como se tinham partido as portas, mandou homens ‘com lanças e partasanas’ ficar de guarda em frente delas.

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VIDA QUOTIDIANA DAS MONJAS NO MOSTEIRO MEDIEVAL - CAPº XVII O CASO DE D. FILIPA D'EÇA - PARTE 1 - A ELEIÇÃO

>> quarta-feira, 4 de maio de 2016


No ano de 1538 as monjas de Lorvão elegeram por sua abadessa a D.Filipa d’Eça, prima da falecida D. Margarida d’Eça. D. João III tentara impedir essa eleição, e, como não o conseguisse, agiria pela força, e acabou por levar o caso contra a abadessa eleita a Roma. Os enviados do Rei procuraram convencer a Rota papal, que a razão pela qual D. João III agia contra a eleição de D. Filipa d’Eça obedecia ao seu bem conhecido e provado empenho na reforma dos mosteiros do Reino. Dando a entender, que Lorvão carecia de reforma, e que D. Filipa d’Eça não era mulher indicada para estar à cabeça de um mosteiro necessitado de reforma.

 Ora o facto era, que não havia em Lorvão falta de moralidade e de religiosidade. Na insuspeita opinião do Abade de Claraval, Lorvão era, em 1533, um dos poucos mosteiros portugueses que não carecia de reforma. O Abade criticara na sua visita o excessivo nepotismo da então abadessa - os principais lugares eram ocupados por parentes suas - e a exagerada hospitalidade que o mosteiro concedia, mas não encontrara outros motivos de crítica em matéria de religião e moral. O visitador de Orem que visitara o mosteiro três anos depois, foi da mesma opinião. Não havia portanto necessidade de reforma Como então explicar o procedimento de D. João? Os Eças eram aparentados à casa real, pela sua descendência de D. Pedro e D. Inêz de Castro, Senhoras da família ocupavam cargos principais em alguns mosteiros do Reino, e em nenhum o seu domínio era tão preponderante como no de Lorvão, havendo quase cem anos, que abadessas daquela grande linhagem, governavam, para não dizer, reinavam, em Lorvão. É evidente que o Rei tinha uma particular animosidade contra aquelas longínquas parentas, que aquele feudo de Eças em Lorvão irritava D. João III, mas a leitura dos documentos mostra, que o antagonismo era também de ordem religiosa. As Eças eram mulheres que não comungavam das fanáticas ideias de rigor religioso que D. João advogava. A religiosidade que os visitadores de Cister tinham gabado em Lorvão não convencia D. João. Ao pretender impor a Lorvão uma abadessa da sua escolha, fá-lo muito claramente também para que ali se praticasse a religião como ele a entendia. Uma razão de ordem material também existia. D. Catarina de Eça, a primeira abadessa desse nome mandara fazer um grande número de objectos religiosos de grande qualidade e valor, e já o rei D. Manuel se interessara por esse tesouro, mandando avaliá-lo. O mesmo, como se verá, fará seu filho.

Em 1538 o rei era informado, que a abadessa dona Margarida d’Eça estava gravemente doente. Age imediatamente Escreve para Coimbra, ao bacharel Domingos Garcia dando-lhe rigorosas instruções em previsão da previsível morte da abadessa. Que o bacharel estivesse atento às notícias vindas de Lorvão, e que, logo que dona abadessa morresse, fosse ao mosteiro, e tomasse conta deste. Devia impedir, e por todos os meios, que as monjas elegessem nova abadessa. Ele, Rei, escrevia nesse sentido à Prioresa – em cujas mãos estaria o mosteiro após a morte da abadessa - em carta que juntamente enviava ao bacharel. Que este entregaria à dita senhora logo após a morte de dona Margarida. Eis a carta a Domingos Garcia, da qual se conserva o rascunho: 

‘Bacharel Domingos Garcia, eu, el Rey vos envio muito saudar. Nós houvemos agora grã recado como está abadessa de Lorvão em mui má disposição, e em perigo de sua vida. Pelo qual havemos por Nosso serviço vos avisar que tenhais grande avisamento de saber como ela está, e, em tal caso que, dispondo Nosso Senhor dela, possais logo, na mesma hora, ser disso notificado. E, como o fordes, logo, com grande diligência, vos hy ao dito mosteiro, e tomai por nossa parte a posse da abadia dele, e de todas as rendas do dito mosteiro’. E isso, escrevia o rei ainda, tanto no lugar de Lorvão, como em todos os outros lugares da comarca de Coimbra onde o dito mosteiro tivesse rendas. O bacharel faria o inventário de todos esses bens, assim como de toda a prata, e de todos os ornamentos existentes. E de tudo que houvesse no celeiro, e de tudo que existisse da abadessa dona Catarina d’Eça. Tratava-se de objetos dos quais o bacharel já em tempos fizera inventário por mandado de el-rei D. Manuel: ‘de que vós fizeste inventario pelo mandado d’el-Rey, nosso senhor e padre, que santa gloria haja’. Depois de ter feito o dito inventário de pratas e ornamentos de culto, o bacharel poria tudo - excetuando aquilo que fosse preciso para os ofícios religiosos - em mão de pessoa segura. A qual de nada disporia sem especial mandado. Do que houvesse na casa em pão e vinho e outros mantimentos, o bacharel forneceria à vigária e outras oficiais da casa o que fosse necessário para a manutência (sic) das monjas e servidores da casa. Enviaria ao rei cópia de todos os inventários. Poderia suceder, ‘que as freiras do mosteiro se queiram intrometer de eleger abadessa’. O bacharel entregaria à Prioresa a carta que juntamente recebia, pela qual ele, Rei, proibia essa eleição: ‘pela qual lhes defendemos, que não se intrometam de fazer eleição da abadessa’. Ele próprio trataria disso: ‘nós queremos intender acerca de quem seja provida a dita abadia, e que nela sirva a Nosso Senhor assim como seja mais servido, e que as coisas da religião melhor façam’. 1Era, como atrás já se disse, à prioresa - ou vigária, como também se designava – que cabia o governo depois da morte da abadessa. E ela que era responsável pela eleição de uma nova prelada. D. João escreve-lhe a seguinte carta:

“Vigaria, sub-prioresa, freiras e convento do mosteiro de Lorvão, nós el-Rei vos enviamos muito saudar. Nós houvemos agora recado como a abadessa desse mosteiro estava muito doente, e de tal modo que sua vida está muito perigosa’. A notícia entristecera-o, ‘pela bondade e virtudes’ dessa senhora. Dispondo Deus chamá-la a si, ele, Rei, trataria de a
D. João III
substituir, de forma, a que, a dita abadia ‘seja provida de pessoa que a Nosso Senhor inteiramente sirva, e com quem nossa Religião receba muito louvor e todas vós outras sejais consoladas’. Por tudo isso, proibia-lhes que fizessem eleição de nova abadessa: ‘vos encomendamos muito, e mandamos, que, por seu falecimento, vós não vos entremetais de fazer eleição de abadessa, e estejais regidas e governadas pelas oficiais da casa, assim como sempre se costumou fazer, até ser eleita abadessa’. Da qual, lê-se em seguida, ele, Rei, esperava em Nosso Senhor, seria tal ‘de que se sigam os bens que desejamos’. O bacharel Domingos Garcia, Juiz de Fora de Coimbra, dir-lhes-ia o mais que ele ordenava.
2

As coisas não correram exatamente como o rei previra e ordenara. O decorrer dos acontecimentos indica, que no mosteiro as monjas não foram apanhadas de surpresa e que se tinham preparado para uma eventual intervenção real. Houvera uma primeira alerta nesse sentido, quando, numa medida sem precedentes, el-rei D. Manuel mandara inventariar os bens de D. Catarina d’Eça depois da sua morte. Houvera provavelmente outras medidas, e talvez rumores que lhes chegavam de fora as tenham alertado. Contactos não faltavam a mulheres tão altamente aparentadas. É também muito provável, que o bacharel escolhido pelo rei não se tenha empenhado a fundo na execução das ordens de Sua Alteza. A corte estava longe, as ligações da gente de Coimbra a Lorvão eram muito fortes. O facto é, que nunca mais se fala em Domingos Garcia. E que o seu sucessor, um tal Sebastião Lopes, também seria substituído.

Tudo indica que as monjas de facto não se deixaram surpreender. Para não terem de obedecer a alguma ordem desagradável da parte do rei, elas fecharam as portas do mosteiro logo após a morte de D. Margarida, evitando assim a recepção de cartas ou outras missivas. Não as lendo, ou ouvindo, não eram obrigadas a seguir o que porventura nelas lhes fosse ordenado. Em seguida procederam à eleição de nova abadessa. A 11 de Fevereiro de 1538, dona Filipa d’Eça, era eleita abadessa do mosteiro de Santa Maria de Lorvão. Havia de novo uma Eça à cabeça do mosteiro.

Dona Filipa, que não era monja de Lorvão, encontrava-se de visita no mosteiro. talvez lá estivesse para acompanhar a abadessa sua prima, nos seus últimos momentos. O mais provável, é que ela ali se encontrava deliberadamente, em previsão do que poderia suceder. E mesmo muito provável, que a eleição de dona Filipa obedecesse a um bem pensado plano da abadessa dona Margarida. Há documentos que - indiretamente, é verdade – apontam nesse sentido. Datado de 15 dias do mês de Abril de 1534,- quatro anos antes da sua morte - ‘por mandado da senhora dona Margarida d’Eça, em a pousada da dita senhora, em presença de ela dita senhora e de seu convento’, a abadessa requerera a frei Thomas, monge da ordem de Cister, e notário apostólico, que lhes fizesse um treslado de certa Bula papal, e que esse treslado fizesse fé como se fosse o próprio original. Tratava-se da Bula pela qual o papa Honório III tomara o mosteiro, as suas monjas, e os seus bens sobre a sua protecção. Não se vê para que outro fim se desejaria naquela ocasião o treslado daquela antiquíssima Bula, a não ser para que a dita Bula pudesse ser usada em defesa de antigos direitos, apresentando-a em Roma.

A eleição de uma abadessa que não era monja do próprio mosteiro, como era o caso de Dona Filipa, tinha uma vantagem. Era previsível que o rei demitiria uma abadessa eleita contra a sua vontade. Se a escolha recaísse em uma monja do mosteiro, ela seria igualmente demitida, mas não necessariamente expulsa. O contrário dava-se com uma nova abadessa que não fosse do mosteiro. Essa, sim, seria decerto expulsa. E, de fora do mosteiro, Filipa d’Eça, - de Bula papal na mão – saberia agir junto das entidades religiosas e civis. E Frei Tomás, o notário apostólico, que D. Catarina d’Eça conseguira para Lorvão, era monge de Cister, e não deixaria de recordar às monjas, de Lorvão que elas eram filhas de Claraval, e que só deviam obediência a Roma A ter sido pensado e preconcebido, e o que se segui-o aponta nesse sentido, o plano foi brilhante.

Nota: este capítulo tem quatro partes. Na próxima semana será publicada a 2ª parte: A Expulsão



1 T.T. Cartas Missivas. Maço 2. 196
2 T.T. Cartas Missivas Mº1 Nr. 38
 

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