Folhetos. Cono os guardar e porque guardar
>> segunda-feira, 27 de abril de 2009
Folhetos. Como os guardar e porquê.
Um dia pedi a um encadernador que, por favor, me fizesse, o mais depressa possível, duas grandes caixas em forma de livros, com bonitas lombadas, em que no rótulo se lesse “Olissiponense” com uma estrelinha por baixo, em um dos volumes, e com duas no outro. As caixas-livro vieram em tempo record, bonitas encadernações meio inglesas e preço correspondente, e logo, com grande alivio, as enchi dos folhetos que ali tinha sem saber onde os arrumar.
Na caixa de uma estrelinha arrumei uma colecção de folhetos de cordel e uma sobre o terramoto de 1755. Na caixa de duas estrelinhas arrumei trinta e quatro pequenas obras, na maioria impressas no séc XIX, sobre monumentos de Lisboa, acontecimentos celebrados ou sucedidos em Lisboa, enfim uma verdadeira miscelânia olissiponense.
Jurei um dia que nunca faria colecções. Nem colecções de selos, nem colecções de dedais, nem de caixas de fósforos, colecções nunca. Também em matéria de livros estava decidida a não me meter em colecções, e cumpri. É verdade que tenho algumas colecções, mas são sempre coisa pequena, não são aquilo que se entende por colecção.
As colecções começam em geral por acaso. Talvez pela aquisição fortuita - porque num leilão nos apeteceu, porque lhe achámos graça num alfarrabista - de uma qualquer obrinha sobre determinado tema. Vamos-lhe juntando parceiros quando os encontramos. Foi assim que arranjei, sem querer, por acaso, uma pequena colecção de folhetos de cordel e outra sobre o terramoto de 1755.
Percorrendo as prateleiras da Livraria Ultramarina de José Maria Almarjão dei com uma fila de livrinhos sem capa com títulos jocosos. Perguntei o que era aquilo.
--Então não sabe? É literatura de cordel.
São pequenas peças, pequenos "entremeses", nos quais duas a quatro figuras discorrem com mais ou menos graça sobre os acontecimentos do tempo, ou sobre temas eternos como o amor, o dinheiro, a falta dele etc. Designavam-se assim, de cordel, porque os livrinhos – os folhetos - se ofereciam ao público pendurados (enfiados? escarranchados?) em cordéis. Comprei alguns. A partir daí aconteceu o que tinha que acontecer. Quando encontrava um, juntava-o à colecção. Mas, como disse, não sou uma verdadeira coleccionadora, nem os folhetos eram tão apaixonantes, a dada altura parei. Tenho uns vinte e quatro, e acho que chega para saber do que se trata. Estão na caixa de uma estrelinha.
Os folhetos são em geral de pouquíssimo ou nulo valor literário, mas são uma boa fonte de informação sobre os costumes dos séculos XVIII e primeira metade de XIX. Tenho um folheto intitulado: "Os Banhos de Mar na Junqueira e sítio de Santa Apollonia, vistos da terra pelo Olho crítico de ver as coisas como são", diálogo entre duas vizinhas sobre os banhos na praia da Junqueira, que nos faz pensar que as praias de nudistas da Caparica tinham um rival na da Junqueira. O que mais ali se apreciava, diz a vizinha banhista à outra, era a liberdade:
“--O meter-se na água é o menos. O mais é aquele desafogo, aquela liberdade, aquela sem-cerimónia....Ali não há diferença, nem excepção de pessoas. O branco, o preto, o moço, o velho, a casada, a viúva, a solteira..... enfim, numa palavra, tudo, tudo está misturado....
--Pois os homens estão no banho misturados com as mulheres, pergunta a vizinha mais adiante
--Pois que tem? Isso é alguma bicha de sete cabeças?
E a outra:
--E Vossa Mercê despe-se ali nalguma casa?
--Casa! Qual casa! Vossa mercê está sonhando. Quem deu lá casa numa praia. Cada um se arruma como pode. Ali não há cerimónia porque tudo é um...........Eu quando chego, vou para ali para onde se acerta, e dispo-me. Quem me não quer ver, que não olhe para mim”
E por aí fora.
Tenho outro folheto, que também me parece de algum interesse, esse, em duas partes, datadas de 1788,9, que se intitula “O SÁBIO EM MÊS E MEIO. Obra que da experiência de seis anos de Coimbra destilou hum estudante de Leys. Oferecido a todos aqueles que se destinam à vida escolástica na mesma universidade”. Parece-me curioso como informação sobre o dia a dia do estudante de Coimbra daquele tempo, seu vestuário, comida, dinheiro, etc. Em matéria de alimentação era preciso o rapaz ter cuidado ao contratar com as mulheres que forneciam comida. Eram conhecidas por “amas dos estudantes”. Faziam comida em suas casas, e o estudante podia fazer a sua escolha: “ou por ajuste, ou por um rol daquilo que mandam”. Aconselha o autor, que “ao fazer o ajuste”, o estudante o fizesse sempre com estas condições: ”ao jantar tanto de pão em sopas, tanto de vaca, tanto de arroz etc., à ceia tanto d’ervas, tanto de peixe, ou carne etc. E diga logo que em não mandando por isto a certas horas, que não vale”.
Não tenho suficiente conhecimento da vida estudantil conimbricense para poder avaliar se há alguma novidade na obrinha.
Ignoro quantos destes folhetos de cordel sobrevivem nas bibliotecas públicas, um amigo bibliófilo tem, crreio eu, perto de mil, eu tenho uns módicos vinte e cinco exemplares. O que, do ponto de vista literário, tem pelo menos uma vantagem: é que eu os li, o que os coleccionadores que têm centenas decerto não fizeram (desculpe Paulo, se me engano).
A segundo colecção da caixa, é de folhetos sobre o terramoto, e começou quando encontrei o relato daquele dia em alemão, publicadp em Danzig (o Gdansk de hoje). Em alemão, ninguém lia, comprei-o eu. Fui juntando mais alguns desses relatos publicados em folhetos. Mal os lisboetas se refizeram do susto, brotaram poetas e prosadores que relataram e cantaram o acontecimento. Predominam as “sylvas” – composição poética em que se alternam versos de dez e seis sílabas, segundo Cândido de Figueiredo - e os “Paréneses” que, segundo o mesmo, é um discurso moral em verso. Não serão grandes poemas esses relatos poéticos, alguns são mesmo muito maus, mas não se consegue troçar deles. Sentimos que os seus autores estão tentando o impossível: exprimir em verso os horrores que viveram naquele dia. Os relatos em prosa são um pouco melhores, ou antes menos maus. Mas de todos se retira alguma informação. Assim fiquei a saber que a cidade de Coimbra foi relativamente poupada no dia 1 de Novembro. Em “THEATRO LAMENTÁVE, SCENA FUNESTA.....causa natural e mystica do mesmo” lê-se que no dia 1 de Novembro “tremeu a terra porque já não podia suster tanto vicio” - todos os autores atribuiam aquela revolta da terra aos vícios do homem - mas, como mais adiante se lê, em Coimbra o terramoto “não causou mais que o susto”. Devia haver menos vicio por lá. Dos cimos dos edifícios as bolas de pedra e as pirâmides que os ornamentavam, caíam sem ferir ninguém. Os tetos das igreja esperavam pacientemente pela saída dos fieis antes de se desmoronarem: “A abobada do antigo colégio de S. Domingos, com o tremor começou a cair aos pedaços, e esperou, como se fosse capáz de conhecer, que saísse a gente para cair em terra e apanhando ainda uma mulher. lhe rompeu o vestido sem ofender o corpo”. Os casos desse género sucedem-se, os telhados das casas e abobadas das igrejas caiam, tendo o cuidado de não ferir alguém.
A gratidão da população manifestou-se em promessas e procissões, e por fim, toda a cidade, “por insinuação do excelentíssimo senhor Bispo Conde jejuou um dia a pão e água”.
Pareceu-me apropriado juntar aos folhetos sobre o grande tremor de terra, um folheto sobre outra calamidade. Em 1732 houve uma terrível tempestade em Lisboa e arredores, e um anónimo ficou tão impressionado, que decidiu coligir o que se sabia sobre outras tempestades e fazer um estudo sobre a matéria. Começou pelo dilúvio. O qual se deu, informa-nos o anónimo autor, “no dia decimo sétimo do mês de Abril, por ter começado o mundo em Março (como diz Pineda)”. Sessenta anos depois desse primeiro dilúvio haveria outro, um pouco mais pequeno, e a partir de aí, os elementos não descansaram: “dilúvios, pestes, terramotos, tempestades, inundações, raios e furacões...”, ao autor nada escapa em matéria de calamidades, com especial atenção às sucedidas em Portugal. O folheto intitula-se: “A FENIX DAS TEMPESTADES, renascida no dia 15 de Outubro de 1732, com um discurso sobre a origem dos ventos, composta e ordenada por um Anonymo”. Quem quiser saber em pormenor dos estragos causados em Lisboa e arredores pela tempestade de 1732 terá toda a vantagem em consultar “A Fénix das tempestades”.
Porquê guardar isso tudo, vale a pena? É pergunta a que não sei responder. Ali estão, em todo o caso, bem arrumadinhos: entremezes, sylvas, paréneses, discursos, relações, sermões. Sempre são livros, não são?